Comunismo sem transição?
Conforme o capitalismo imperialista continua sobrevivendo a contradição entre as potencialidades das forças produtivas e a miserabilidade a que o domínio das relações capitalistas de produção condena a imensa maioria das massas se faz mais patente. Uma das teses centrais de Marx foi justamente assinalar que esta contradição não poderia ser resolvida sem a prévia conquista do poder pela classe operária, destruindo o estado burguês e edificando uma forma de dominação transitória – o estado operário ou o “estado tipo comuna” –, cujo objetivo era sua própria extinção à medida que avançava a construção do socialismo.
O que há de comum entre as mais diversas teorias e as que a burguesia tem procurado justificar seu domínio tem sido tratar de demonstrar que o capital é capaz de superar, de uma ou outra maneira, sua contradição fundamental. No final do século XIX positivistas e “revisionistas” do marxismo coincidiam em afirmar que o capitalismo havia se desenvolvido de tal forma que suas contradições haviam sido atenuadas e o mundo progredia evolutiva e pacificamente. A guerra mundial, a explosão da revolução russa e as comoções que a acompanharam mostraram a superficialidade deste ponto de vista e deram a razão aos que assinalavam que o desenvolvimento da fase imperialista intensificava. ao contrário de atenuar, as contradições do domínio do capital, atualizando a perspectiva da revolução socialista. Essa foi a enorme superioridade da análise dos marxistas revolucionários que fundaram a Terceira Internacional (Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo etc.), demonstrada não apenas na teoria mas nos fatos, com o triunfo da revolução de outubro, um acontecimento que desde o maior teórico da sociologia burguesa – Max Weber – até os mencheviques russos julgavam impossível às vésperas de sua realização.[1]
Após a Segunda Guerra Mundial, ao amparo do mundo de Yalta e do fôlego conseguido pelo capital nos anos do boom, voltaram a florescer as teorias que preconizavam um desenvolvimento capitalista sustentado e ilimitado sob a égide do “estado de bem-estar keynesiano”, chegando inclusive a criar grande efeito em teóricos marxistas que adotaram, a sua maneira, a tese de que existia um “neocapitalismo”[2]. Novamente essas teorias se chocaram com a realidade combinada do ascenso revolucionário mundial iniciado em 1968 e da crise econômica que encerrava o “boom”. Porém, o desafio revolucionário mundial foi contido e novamente a burguesia tomou a ofensiva no início dos anos 80.
A ideologia “neoliberal” que acompanhou este ataque imperialista sobre as conquistas operárias e populares apresenta, comparativamente a outras ideologias burguesas, a peculiaridade de centrar-se não nas expectativas de progresso das massas mais espoliadas e sim na resignação de que não havia qualquer outra alternativa a ela. A operação ideológica fundamental consiste em transformar em conseqüências inevitáveis do progresso tecnológico os padecimentos causados às massas, como o desemprego, o aumento da pauperização ou a precarização do trabalho, encobrindo que não é a técnica e a ciência quem provoca isto, mas sim sua utilização nos termos ditados por um punhado de monopólios capitalistas que dominam a economia mundial. A idéia de que o capitalismo vive, desde os princípios dos anos 70, uma nova “revolução técnico-científica” em grande escala está presente tanto nas elaborações da academia burguesa, como entre autores que se reivindicam marxistas e de esquerda. Com a persistência, na década de 90, da situação de desemprego de massas em diversos países a velha idéia de que estávamos em presença de uma “sociedade pós-industrial” recobrou novas forças, apresentada em suas últimas versões como a emergência de uma nova forma de capitalismo – o “capitalismo cognitivo”.
O “fim do trabalho” e a aparecimento de um “novo sujeito” em conformidade com este novo estágio foram temáticas recorrentes entre os defensores dessas posturas. Se bem que em outras ocasiões tenhamos escrito sobre o tema, sintetizaremos e ampliaremos a crítica a essas posições e às definições políticas que implicam, dando especial ênfase às proposições de Toni Negri, por ser quem o faz desde uma postura política mais radicalizada e com uma linguagem teórica mais sofisticada.
Parte I – MITO E REALIDADE SOBRE O
“FIM DO TRABALHO”
Os pressupostos da tese do “fim do trabalho”
Em sua análise da sociedade contemporânea Negri sustenta uma visão refinada e erudita (“savant”, no dizer de Michel Husson) da tese do “fim do trabalho” popularizada, em diferentes matizes, por J. Riffkin, Dominique Meda, Vivianne Forrester, André Gorz e a escola italiana dos teóricos da “intelectualidade das massas”, entre outros. Esta tese, que encontrou renovado eco na última década, pretendia dar conta de uma suposta perda da “centralidade do trabalho” (com o desemprego de massas como uma de suas manifestações principais) como conseqüência inevitável da passagem da “sociedade industrial” à “sociedade pós-industrial”. Nesta, os avanços tecnológicos produziriam um salto na produtividade de bens materiais que a substituição progressiva do “trabalho vivo” pelo “trabalho morto”, assalariados por máquinas (robôs e computadores), se tornaria uma tendência irreversível e em crescimento geométrico. A aplicação de métodos “toyotistas” na organização do trabalho seriam, por sua vez, também produto dos avanços tecnológicos e da incorporação por parte do capital das aspirações mostradas pelo proletariado na “revolta contra o trabalho de (19)68”, que redundaram no crescimento das funções de controle e gestão do trabalhador em detrimento da produção. “Sociedade pós-industrial” seria sinônimo da mutação das condições gerais do capitalismo na hegemonia do “trabalho imaterial” e o “capitalismo cognitivo”. Segundo esta tese, nesta nova situação do capitalismo (que às vezes denominam como “pós-capitalista”) a atividade cognitiva advém no fator essencial de criação de valor, calculando-se este em grande parte por fora dos lugares e do tempo de trabalho. O conhecimento transformar-se-ia em “um fator de produção necessário tanto como o trabalho e o capital, e a valorização deste fator intermediário obedece a leis muito particulares, a tal ponto que o capitalismo cognitivo funciona de maneira diferente do capitalismo ‘comum’”[3], com a conseqüência de que a teoria do valor não poderia dar conta da transformação do conhecimento em valor. O trabalhador já não necessitaria mais “dos instrumentos de trabalho (ou seja, capital fixo) que são postos a sua disposição pelo capital. O capital fixo mais importante, aquele que determina as diferenças de produtividade, se encontra no cérebro dos seres que trabalham: é a máquina útil que cada um de nós carrega em si. É esta a novidade absolutamente essencial da vida produtiva de hoje”[4]. Esta tese apresenta um conjunto de unilateralidades que turvam a compreensão das condições contemporâneas do capitalismo e da luta de classes[5].
Mudança tecnológica, aumento de produtividade e desemprego
Comecemos por um primeiro aspecto da idéia sempre difusa do “fim do trabalho”. Não se refere, obviamente, ao trabalho considerado antropologicamente – como um atributo específico da ação do homem dirigido a assegurar e criar as condições de sua própria vida de um modo único e que lhe é próprio –, mas sim a sua manifestação na sociedade capitalista – o trabalho assalariado. Segundo os defensores dessa tese, o desemprego de massas seria produto do incremento no ritmo das mudanças tecnológicas e nos aumentos de produtividade. Isso é assim? Ainda que as mudanças tecnológicas em muitos ramos da produção tenham sido muito importantes, e explicam a redução na quantidade de assalariados em certos ramos que haviam sido motor da expansão capitalista do pós-guerra, não explicam por si mesmos o desemprego de massas. O volume total de trabalho tem aumentado em quase um quarto, se consideramos os seis principais países capitalistas. Segundo assinala Husson[6], de 431 bilhões de horas de trabalho existentes em 1960, nestes países, se avançou a 530 bilhões em 1966, aumento especialmente notável na economia norte-americana e que inverte, desde 1982, a tendência à queda do volume de trabalho que se observava entre 1960 e 1973. Este aumento de volume do trabalho é acompanhado por uma diminuição do crescimento da produtividade horária em relação aos anos do boom, que passa de 4,7% entre 1960 e 1973 a 1,8% entre 1983 e 1996. Mesmo que as cifras de aumento da produtividade tenham melhorado nos últimos cinco anos do século, não basta para reverter esta tendência geral. Não se pode, então, encontrar aqui a explicação do desemprego. Ao contrário, o que sim é uma novidade nos últimos 25 anos é que a brutal ofensiva capitalista sobre a classe operária provocou uma diminuição dos salários reais e uma alteração na tendência à redução do tempo de trabalho nos principais países capitalistas. Isto levou a que os aumentos de produtividade, ainda que menores aos dos anos do boom, tenham significado um grande aumento da diferença entre a produtividade e o salário, elevando os lucros dos capitalistas. Por sua vez, o capital, produto da “crise de acumulação” que sofre desde meados dos anos 70, encontra menos ocasiões rentáveis para “reinjetar” de maneira “produtiva” a mais-valia. É um capitalismo “que é, em certa medida, obsoleto e que não pode reproduzir-se a não ser rechaçando a satisfação das necessidades sociais e organizando a regressão social”[7], no qual a impossibilidade do capital de reproduzir-se em níveis de rentabilidade média produz a situação praticamente inédita de que o crescimento da taxa de lucros nos últimos anos não foi acompanhado pelo aumento da taxa de acumulação, mas sim pelo dos negócios da esfera especulativa da economia (o que alguns autores chamam “financeirização”).
Conforma-se, assim, uma espécie de “círculo vicioso” do qual o capital tem sido até o momento incapaz de sair, mas sim “fugindo para a frente”, ou seja, agravando suas contradições. Adicionalmente, a falta de relação direta entre avanços tecnológicos, crescimentos da produtividade e aumento do desemprego demonstra-se no paradoxo insolúvel para os teóricos do “fim do trabalho”: a economia com maior desenvolvimento tecnológico e crescimento da produtividade no mundo, a economia norte-americana, teve na década de 90 – a de maior crescimento médio desde o fim do boom – índices de desemprego que se registram entre os menores do século, oscilando ao redor dos 4%. Se a tecnologia e os aumentos de produtividade fossem as principais causas do desemprego, então os Estados Unidos estariam encabeçando os índices do mesmo. Nos Estados Unidos, o que explica essa “excepcionalidade” norte-americana é a combinação de uma relação de forças favorável obtida em relação ao proletariado durante o governo Reagan – que precarizou o emprego, permitindo a proliferação dos “empregos precários” durante a era Clinton – com a situação de proeminência na arena internacional nos anos 90,
Uma reconfiguração na situação dos assalariados
Porém, independentemente de sua causa, observa-se uma diminuição generalizada do trabalho assalariado no capitalismo contemporâneo? Ainda que o desemprego de massas seja um fenômeno real em diversos países, é falso o panorama que pinta uma diminuição crescente dos assalariados. Se considerarmos o conjunto dos assalariados em nível mundial, seu número global tem aumentado e não diminuído nas últimas décadas, com a proletarização crescente de novos setores (femininização da força de trabalho, assalariamento da classe média, extensão das relações salariais à periferia capitalista etc.) e a diminuição dentro do conjunto da quantidade de trabalhadores com emprego estável. O sociólogo brasileiro Ricardo Antunes reconhece cinco tendências nesta reconfiguração da classe operária nos últimos anos: a) a redução do proletariado manual, fabril, estável, típico da fase taylorista e fordista, ainda que de distinto modo, segundo as particularidades de cada país e sua inserção na divisão internacional do trabalho; b) contraposta a esta se pode observar o enorme aumento em todo o mundo dos setores assalariados e do proletariado em condições de precariedade trabalhista, com o aumento explosivo, paralelo à redução do número de empregos estáveis, da quantidade de trabalhadores homens e mulheres sob o regime de tempo parcial, ou seja, assalariados temporários; c) aumento notável do trabalho feminino (em alguns países chegando a 40% ou 50% da força de trabalho), tanto na indústria como, especialmente, no setor de serviços, configurando uma nova divisão sexual do trabalho, com as mulheres predominando em áreas de maior trabalho intensivo onde é muito importante a exploração do trabalho manual, e os homens nos setores onde é maior a presença do capital intensivo, de maquinário mais avançado; d) expansão no número de assalariados médios em setores como o bancário, turismo, supermercados, isto é, os chamados “setores de serviços” em geral; e) exclusão do mercado de trabalho dos “jovens” e dos “velhos”. Antunes assinala que contrariamente à tese do “fim do trabalho” “parece evidente que o capital tem conseguido ampliar mundialmente as esferas do trabalho assalariado e da exploração do trabalho, segundo as diversas modalidades de precarização, subemprego, trabalho part time etc.”.[8] Esta tendência ao crescente assalariamento e urbanização não é homogênea nem linear. Enquanto certos países e regiões (África!) se “desindustrializaram” em comparação com os anos 60, outros (México, China, África do Sul, Coréia do Sul até a crise de 1997) têm visto nos últimos anos um crescimento meteórico do número de assalariados, em grande proporção trabalhadores industriais. À diminuição dos trabalhadores de certos ramos de produção (os distintos ramos metalúrgicos ou os ferroviários, entre os mais significativos) corresponde o aumento em outros. Diminuem os trabalhadores com emprego estável e crescem os de tempo parcial. O que temos diante de nós é, portanto, não “o fim do trabalho assalariado” mas a reconfiguração da situação do proletariado.[9]
O “capitalismo cognitivo”
Analisemos, agora, a “novidade” que seria o “capitalismo cognitivo”, às vezes apresentado como a emergência de um “pós-capitalismo”. Esta tese parte de considerar como uma “novidade” a faculdade do capital de apropriar-se dos progressos da ciência e do conhecimento. Longe de ser “novidade”, esta capacidade forma parte fundamental da análise marxista do capitalismo. Nos Grundrisse, Marx assinala em referência à ciência que “a acumulação do saber, da habilidade, assim como de todas as forças produtivas gerais da inteligência social, são agora absorvidas pelo capital que se opõe ao trabalho: elas aparentam ser uma propriedade do capital ou, mais exatamente, capital fixo”. Como propõe corretamente Michel Husson: “Não pode dizer-se o mesmo do conhecimento que os expoentes do capitalismo cognitivo erigem como terceiro fator de produção, como se este substituíra o capital ou o trabalho como fonte de riqueza?”[10] E continua: “Uma das características intrínsecas do capitalismo, a fonte essencial de sua eficácia, reside uma vez mais na incorporação das capacidades dos trabalhadores à sua maquinaria social. É neste sentido que o capital não é um arsenal de máquinas ou de computadores em rede, mas uma relação social de dominação. A análise do trabalho industrial tem desenvolvido amplamente este ponto de vista. A análise da opressão das mulheres faz ter importância (ou deveria fazer) a captação pelo capital do trabalho doméstico como fator de reprodução da força de trabalho. A escola pública não é outra coisa que esta forma de investimento social. A idéia mesma de distinção entre trabalho e força de trabalho repousa no fundo da questão (...), ao querer a todo custo ressaltar a nova forma de funcionar do capitalismo, as teses sobre o capitalismo cognitivo esquecem que ditas mudanças não fazem desaparecer as contradições do capitalismo mas sim que as torna mais e mais palpáveis”.[11]
Fascinados por seu objeto, as novas tecnologias, os teóricos do capitalismo cognitivo esquecem a principal contradição própria destas, a dificuldade crescente para transformar em mercadorias as produções que as correspondem: “O capital produz mercadorias e funciona segundo a lei do valor, que sua lei. Longe de evitar esta lógica econômica, busca constantemente reproduzi-la, e uma das dimensões da nova economia é precisamente que isto se torna cada vez mais difícil”.[12] Isto se deve às características peculiares que apresentam os produtos elaborados por este setor da economia. Uma nova tecnologia implica primeiro um investimento inicial importante, semelhante ao de capital fixo. Nisto é similar ao que ocorre com a produção de qualquer mercadoria. O problema surge com os modos de valorização deste capital, em particular devido a que a inovação ou o produto final podem ser apropriados quase gratuitamente pela concorrência logo de sua difusão. A utilização das mesmas pelo concorrente leva a uma imediata desvalorização do produto (já que em seus custos não há porque estar contemplado o investimento em capital inicial), introduzindo uma lógica relativamente contraditória com o mercado capitalista. O resultado mediante o qual o capital dá cabo desta dificuldade é o limite temporal da difusão daquilo que pode ser apropriado ou a regulamentação de seu acesso, como temos visto recentemente no caso Napster. Apenas neste sentido é correta a firmação de que o valor do conhecimento não depende de sua originalidade mas sim das limitações estabelecidas ao acesso do conhecimento, “à capacidade prática de limitar sua difusão livre”[13], limitando “com meios jurídicos (direito de autoria, licenças, contratos) ou monopólicos a possibilidade de copiar, imitar, reinventar, de se apropriar dos conhecimentos de outros”.[14] Mesmo admitindo que exista uma grande difusão deste novo tipo de produtos potencialmente gratuitos (quando na realidade não é mais que uma gama muito limitada de produtos, considerando o mercado global), o que temos não é um novo modo de produção mas “o incremento de uma contradição absolutamente clássica entre a forma que adota o desenvolvimento das forças produtivas (a difusão gratuita potencial) e as relações de produção capitalista que buscam reproduzir o status do mercado à custa das potencialidades das novas tecnologias”.[15] Estamos, aqui, diante da manifestação desta contradição do capital, antecipada genialmente por Marx nos Grundrisse: “de uma parte, desperta todas as forças da ciência e da natureza assim como aquelas da cooperação e circulação sociais a fim de criar riqueza independente (relativamente) do tempo de trabalho utilizado por ela. De outra parte, busca medir as gigantescas forças sociais assim criadas conforme o padrão do tempo de trabalho e encerrá-la nos limites estreitos, necessários para manter, enquanto valor, do valor já produzido. As forças produtivas e as relações sociais – simples fases do desenvolvimento, diferentes do indivíduo social – aparecem unicamente para o capital como meios para produzir a partir de sua estreita base. Porém, de fato, as condições materiais são capazes de fazer e explodir esta base.” A operação mistificadora de Negri, Rullani e outros consiste em apresentar a crescente dificuldade do capital para “buscar medir as gigantescas forças produtivas sociais... conforme o padrão do tempo de trabalho”, para continuar produzindo na “estreita base” das relações de produção capitalista, como se esta houvesse levado a uma mudança de qualidade nas condições gerais da produção capitalista, como se o capital houvesse sido capaz de superar seus próprios limites. No mesmo sentido, a idéia de muitos dos teóricos do “fim do trabalho” de que estaríamos diante de uma perda de substância da lei do valor devido à necessidade de gastar menos força de trabalho para produzir uma mercadoria, evita justamente captar a dimensão profunda da atual crise capitalista: que é a incapacidade do sistema para escapar desta lei que o leva a funcionar de maneira crescentemente agressiva. Os vinte anos que vivemos de ofensiva imperialista “neoliberal” são uma grande mostra destes limites do capital, que para conseguir valorizar-se tem-se visto crescentemente empurrado a desenvolver a esfera especulativa da economia e a aumentar brutalmente a taxa de exploração da classe operária. A superação, mediante a conquista do poder pela classe operária, da “estreita base capitalista” é a condição para desenvolver a potencialidade existente nas forças produtivas sociais, permitindo assim que estas deixem de ser “forças produtivas do capital” (instrumentos para aumentar a extração de mais-valia dos trabalhadores) e, ao contrário, liberem o caminho para passar do “reino da necessidade” para o “reino da liberdade”.
Um novo sujeito independente e autônomo?
A mistificação compartilhada por Negri e os teóricos da “intelectualidade de massas” continua se encaramos o que implicam estas teses em relação à constituição de um sujeito antagônico ao poder do capital. Segundo Negri e Lazzarato, “vinte anos de reestruturação das grandes fábricas têm levado a um estranho paradoxo. Em efeito, é por sua vez sobre a derrota do operário fordista e sobre o reconhecimento da centralidade do trabalho vivo mais e mais intelectualizado na produção que tem-se constituído as variantes do modelo pós-fordista. Na grande empresa reestruturada, o trabalho do operário é um trabalho que implica mais e mais, em níveis diferentes, a capacidade de eleger entre diversas alternativas e, portanto, a responsabilidade de algumas decisões. O conceito de “interface” utilizado pelos sociólogos da comunicação dá, bem, conta desta atividade do operário. Interface entre as diferentes funções, entre os diferentes equipamentos, entre os níveis de hierarquias etc. Como é prescrito pelo novo management (nova administração), hoje ‘é a alma do operário o que deve prevalecer na fábrica’. É sua personalidade, sua subjetividade o que deve ser organizado e dirigido. Qualidade e quantidade de trabalho são reorganizados ao redor de sua imaterialidade. Esta transformação do trabalho operário em trabalho de controle, de gestão de informação, de capacidade de decisão que requerem o concurso da subjetividade atinge aos operários de maneira diferente segundo suas funções na hierarquia da fábrica, mas ela se apresenta doravante como um processo irreversível (...) Podemos avançar a seguinte tese: o ciclo do trabalho imaterial está preconstituído por uma força de trabalho social e autônoma, capaz de organizar seu próprio trabalho e suas próprias relações com a empresa. Nenhuma ‘organização científica do trabalho’ pode predeterminar esse saber fazer e esta criatividade produtiva social que, hoje, constituem a base de toda capacidade de empreendimento.”[16]
De acordo com esta visão, o capital se viu obrigado a tomar nota da revolta operária de 68 “contra o trabalho”, devendo modificar a organização “fordista” do trabalho no sentido de envolver a subjetividade do trabalhador na produção, produzindo paradoxalmente um desenvolvimento das faculdades autônomas do trabalhador. Porém, a mutação sofrida não se deteria aqui. A fábrica havia perdido a hegemonia como unidade produtiva social e, produto da revolução nas comunicações e de um novo salto nas forças produtivas, todo sujeito poderia agora apropriar-se autonomamente dos conhecimentos técnicos e científicos que haviam deixado de ser patrimônio do capitalista. Viveríamos na época da hegemonia da “intelectualidade de massas”. Todo membro da sociedade é um produtor de mais-valia, independentemente de sua condição de assalariado, encontrando-se em seu cérebro a principal força produtiva existente hoje em dia. Neste sentido, ao contrário de outros sustentadores da tese do “fim do trabalho”, que deduzem dela a impossibilidade da constituição de um sujeito emancipador, para Negri uma nova força antagônica estaria se desenvolvendo, um “proletariado” mais autônomo e poderoso que a “velha” classe operária assalariada: a multidão, que englobaria o conjunto das classes subalternas.[17] Desta potência da multidão adviria a força para encarar um antagonismo “não dialético” mas “alternativo”, capaz de saltar a transição e realizar “o comunismo aqui e agora”: “Se o trabalho tende a tornar-se imaterial, se sua hegemonia social se manifesta na constituição do ‘general intellect’; se esta transformação é constitutiva de sujeitos sociais independentes e autônomos, a contradição que opõe esta nova subjetividade à dominação capitalista (de qualquer maneira que se queira chamá-la na sociedade pós-industrial) já não será dialética mas alternativa. Isto é, que este tipo de trabalho que nos parece por sua vez autônomo e hegemônico não necessita mais do capital e da ordem social do capital para existir, mas sim que se apresenta imediatamente como livre e construtivo. Quando dizemos que esta nova força de trabalho não pode ser definida no interior de uma relação dialética queremos dizer que a relação que ela mantém com o capital não é apenas antagônica, ela está mais além do antagonismo, é alternativa, constitutiva de uma realidade social diferente. O antagonismo se apresenta sob a forma de um poder constituinte que se revela como alternativo às formas de poder existentes. A alternativa é a obra de sujeitos independentes, ou seja, que ela se constitui no nível da potência e não somente do poder. O antagonismo não pode ser resolvido limitando-se ao terreno da contradição, é necessário que possa desembocar sobre uma constituição independente, autônoma. O velho antagonismo das sociedades industriais estabelecia uma relação contínua, mesmo que de oposição, entre os sujeitos antagonistas e, em conseqüência, imaginava a passagem de uma situação de poder dada à da vitória das forças antagônicas como uma ‘transição’. Na sociedade pós-industrial, onde o ‘general intellect’ é hegemônico não há lugar para o conceito de ‘transição’, mas sim somente para o conceito de ‘poder constituinte’, como expressão radical do novo. A constituição antagônica não se determina mais, portanto, a partir do dado da relação capitalista, mas desde o começo sobre a ruptura com ela; não mais a partir do trabalho assalariado, mas desde o começo a partir de sua dissolução; não mais sobre a base da figura do trabalho, senão da figura do ‘não-trabalho’.”[18]
Para alguns, este reconhecimento do suposto poder ampliado do proletariado tornado multidão poderá resultar gratificante, em meio a tanto derrotismo que inundou os meios intelectuais e a esquerda na última década. Porém, o certo é que é uma visão tão linear e enganosa quanto aquela de todos os que falam da existência de uma sociedade pós-industrial, incapaz de resolver as contradições reais que deve a classe operária deve enfrentar na luta pela sua emancipação. As premissas de Negri para justificar o “novo antagonismo” são falsas: a) o trabalho “imaterial” não é mais que uma pequena fração do total do trabalho social e, em conseqüência, também são uma pequena minoria, do conjunto dos trabalhadores, aqueles vinculados às indústrias da comunicação e informática (entre os quais, muitos fazem, aliás, trabalho manual puro e simples). Além disso, apenas uma pequena fração do proletariado trabalha combinando tarefas manuais com as de “controle” e “gestão”; b) estamos diante da presença de “sujeitos sociais independentes e autônomos”; c) não é certo que a tendência seja a diminuição do trabalho assalariado. Desmoronando as premissas, a conclusão do raciocínio – que o trabalho se apresenta hoje como imediatamente livre e construtivo – torna-se, ela mesma, um non-sense. Poder-se-ia, entretanto, argumentar que mesmo sendo certo que nem todos os trabalhadores estejam nas mesmas condições os trabalhadores ligados à “produção imaterial” poderiam, em virtude de sua situação, estar em condições de ser os que melhor tenderiam a expressar a rebelião do conjunto dos explorados, dos quais é parte. Para isso parece se encaminhar, às vezes, Negri, quando remarca o papel desempenhado pelos estudantes e o novo papel do intelectual[19], reformulando a tese desenvolvida nos anos 60 por Serge Mallet e outros, que viam nos trabalhadores das fábricas mais automatizadas aqueles que, por dispor de maior autonomia no âmbito do trabalho, mais tenderiam a uma política anticapitalista. Todavia, nada disso se verificou durante o ascenso de 68 na França, nem depois, no mundo durante os anos 70, em que para as grandes ações das massas confluíram os distintos extratos da classe operária junto com outros setores explorados e oprimidos e o movimento estudantil. Nada disso se verifica, tampouco, na resistência atual dos explorados. Os que têm protagonizado os eventos mais importantes da luta de classes nos últimos anos têm sido os setores mais diversos: os camponeses latino-americanos (e, entre eles, principalmente os indígenas), os trabalhadores dos serviços públicos europeus, os jovens palestinos, os desempregados e os trabalhadores argentinos, os operários das montadoras coreanas, os estudantes mexicanos. Apresentar as condições de existência de uns poucos como se fosse as do conjunto, colocar um sinal positivo onde outros põem um negativo, assinalar potência pura onde outros vêem apenas limites pode parecer sugestivo e de bom efeito, à primeira vista, porém muito pobre quando se trata de compreender os verdadeiros limites e potencialidades da classe trabalhadora.
As encruzilhadas reais das massas exploradas
Já assinalamos as tendências contraditórias da análise estrutural das transformações sofridas pela classe operária. Em meio a vinte anos de ofensiva imperialista sobre as conquistas da classe operária, não é uma situação de “intelectualidade de massas” e diminuição do número de assalariados o que estamos vivendo. Com diferenças de países e regiões, a tendência geral avança a um processo de assalariamento crescente, no qual uma pequena minoria do proletariado se tornará mais qualificada, enquanto a grande maioria sofre a precarização de suas condições de trabalho envolto em níveis de desemprego que reduzem o preço da força do trabalho, com o conseqüente embrutecimento e, inclusive, a decomposição de grandes setores da classe trabalhadora e, na qual, mesmo aqueles setores de maior qualificação se verão afetados por uma tendência à redução de suas rendas[20]. Esta tendência ao assalariamento das massas trabalhadoras não implica, entretanto, o desaparecimento de outras classes ou quase-classes também oprimidas (e exploradas diretamente) pelo capital, que produzem em condições pré-capitalistas, como o campesinato ou a pequena burguesia urbana. Nem tampouco deixa de lado o processo de lumpen-proletarização que atinge importantes setores do proletariado nos países onde se consolidam elevados níveis de desemprego. Nenhuma dessas desigualdades podem ser compreendidas no conceito amorfo de “multidão”[21] no qual Negri dissolve a especificidade da situação da classe operária e outras classes subalternas, evitando a análise concreta da potencialidade e dos limites das lutas atuais. Limites que são, em parte, estruturais (há setores da classe operária que por seu lugar na produção podem afetar mais ou menos o domínio do capital; o campesinato tende a levantar demandas, como a reforma agrária, que se não são acompanhadas pela luta proletária são, ao seu modo, rearticuladas pelo poder burguês) mas também políticos. Vejamos uns exemplos. O movimento de desempregados na Argentina, que vem lutando há cinco anos, com um crescimento constante em organização e combatividade, desmente aos que sustentam que o trabalhador desempregado não era mais que um “excluído”, que estava estruturalmente incapacitado para a ação coletiva. Nesse sentido, tem mostrado sua “potência”. Mas, ainda, as paralisações gerais argentinas de 2000 e 2001 mostraram que é possível se sobrepor à fragmentação do proletariado sempre que se superem os limites da ação corporativa e se passe à luta política, constituindo – com níveis de desemprego que chegam a 14% e outro tanto de subemprego – a frente única dos trabalhadores empregados e desempregados e destes com as classe médias empobrecidas. Contudo, isso assinala não apenas “potência” mas também os limites que devem ser superados. Se a luta contra o desemprego não for tomada por setores mais concentrados do proletariado da indústria e do transporte é muito difícil que a heróica luta dos desempregados possa ir além da obtenção de “planos de emprego” ou um seguro desemprego. Por sua vez, se os trabalhadores (que novamente têm mostrado sua capacidade para derrubar ministros e gabinetes) não superam a estratégia reformista das direções sindicais e conquistam sua independência política, as classes dominantes encontrarão novas recomposições. Outro exemplo que poderíamos analisar é a explosão que se vê no movimento camponês latino-americano, especialmente os setores indígenas, que têm demonstrado um enorme fortalecimento e combatividade no Equador, Bolívia, México e Brasil nos últimos anos. Sua luta vem sendo um elemento altamente desestabilizador dos governos e dos planos imperialistas na região. Todavia, por sua vez, têm mostrado os limites das estratégias reformistas das direções camponesas e colocado sobre a mesa a necessidade de que o proletariado levante um programa revolucionário e se ponha à altura da batalha que estão dando seus aliados, liderando o conjunto dos oprimidos[22]. A negação em identificar estas encruzilhadas reais não pode levar a outro caminho que não seja desarmar a ação que os explorados têm pela frente.
Superação da alienação?
A descrição do novo sujeito antagonista como a de “sujeitos sociais independentes e autônomos” coloca, ademais, a falsidade de que o capitalismo seria capaz de produzir sujeitos não alienados (nenhum sentido teria falar de sujeitos independentes e autônomos se a alienação persistisse). Mesmo reduzindo a teoria marxista da alienação à alienação do trabalho (ou alienação econômica), de nenhuma maneira poderíamos concluir que esta foi eliminada. O primeiro fator da alienação do trabalho é a separação das pessoas do acesso aos meios de produção e aos meios de subsistência. Historicamente, este foi o elemento necessário para que se generalizasse a característica principal do trabalho alienado – a obrigação das pessoas de vender sua força de trabalho em troca de um salário para poder subsistir. Esta situação não somente continua como tem-se multiplicado desde que Marx a assinalou originalmente com o desenvolvimento dos processos de concentração e centralização capitalista e o domínio do capitalismo monopolista, como expressa o contínuo processo de assalariamento que mostramos anteriormente. Durante o período que o assalariado vende sua força de trabalho ao patrão, este é quem dita as regras de seu uso. Isto não muda porque as novas formas de organização do trabalho recorram, nos reduzidos extratos superiores do proletariado, mais diretamente, a envolver o trabalhador no controle de seu próprio processo de trabalho e porque o capitalista recorra, inclusive, ao “saber operário” para aumentar a produtividade e acrescentar mais lucros. Há aqui uma confusão elementar entre o fato de que o capitalista tenha recorrido, em certos setores da cadeia produtiva, a explorar conjuntamente a força e o intelecto operários (o gasto de energia de seus músculos e cérebro) e a existência de indivíduos “livres e autônomos”. Obviamente, a terceira forma em que se manifesta a alienação do trabalho – o fato de que o trabalhador não dispõe dos frutos de seu próprio trabalho –, tampouco tem variado desde que Marx formulou sua teoria. Por último, é outra falsidade dizer que o trabalho se transformou num meio de auto-expressão humana – “livre e construtivo”. Na sociedade contemporânea, o trabalho é essencialmente trabalho assalariado, e como tal, a capacidade humana de realizar um trabalho criativo é frustrada e distorcida inevitavelmente, ainda quando haja divergência de níveis entre setores minoritários da classe operária que podem dispor de algum controle do uso de sua força de trabalho e de algo de sua criatividade e aqueles setores majoritários submetidos à atividade mecânica e brutal, que são meros apêndices das máquinas como assinalava Marx. Porém, mesmo entre os assalariados que realizam atividades com certo nível de “criatividade”, isto não é mais que, revalidando a contradição, “trabalho criativo alienado”, já que na empresa capitalista seu fim não é outro que o de incrementar os lucros do capitalista, isto é, um fim não fixado pelo coletivo de trabalhadores. Não deixa de ser (parece ridículo pensar o contrário) impossível explicar a um trabalhador de uma maquiladora ou sweatshop (fábricas de suor), com jornadas de trabalho entre 12 e 14 horas, que sua situação é a de um sujeito livre e autônomo. A alienação capitalista não deixa de estar presente mesmo entre os trabalhadores mais qualificados, que realizam atividades centradas no controle, gestão ou designer. Ainda que podendo controlar certos passos do processo de trabalho seu conteúdo estará sempre determinado pelas necessidades do capital. Pensemos, simplesmente, nos designers gráficos (para tomar uma função de grande crescimento nos últimos anos) que mesmo podendo decidir sobre as formas da peça gráfica ou da página da internet sobre a que trabalham nada podem decidir sobre o conteúdo temático das mesmas, decididos pelo gerente de produção ou, no caso do designer autônomo, pelo “cliente” que lhe contratou o trabalho. Pensemos também nos empregados das empresas “ponto.com”, até ontem vedetes e hoje sofrendo demissões massivas diante da queda em desgraça das empresas, com jornadas de trabalho sem limite claro e nenhuma proteção social nem direito à sindicalização, obrigando-os a “receber” como trabalhador “autônomo”... evitando para o empregador os encargos trabalhistas.
No geral, o que tanto Negri como Gorz e os teóricos da “revolução do tempo eleito” deixam de lado é que enquanto subsistir o modo de produção capitalista não haverá possibilidade de a classe trabalhadora transformar-se em “sujeito produtivo autônomo, independente e criativo”, conseqüentemente, desalienado. No capitalismo, a autonomia da classe trabalhadora não pode ser de outra forma que não seja política, passando de ser “classe em si” (objeto de exploração) a “classe para si” (sujeito de sua própria emancipação). É nessa luta pela organização independente da classe trabalhadora que a submissão a dez ou doze horas no local de trabalho pode ser algo distinto de uma atividade embrutecedora a qual apenas se espera concluir “para fazer as coisas verdadeiramente humanas”. A primeira e principal ação autônoma da classe operária na sociedade capitalista pressupõe liberar-se da influência política da burguesia, construir sua organização política revolucionária independente e encaminhar-se para a destruição do poder armado do capital e substitui-lo pelo poder auto-organizado da classe trabalhadora. É esta a condição necessária para realizar a “expropriação dos expropriadores”, sem a qual é impossível superar as condições da alienação do trabalho. A inevitabilidade desta “mediação” ao momento de os trabalhadores conquistarem sua emancipação é o que Negri pretende fazer desaparecer quando nos propõe a visão de um sujeito diretamente “autônomo” e “construtivo”. O reacionário das posturas de Negri (ou de Gorz), então, não está em que proponha que dia a dia se aprofunda a contradição entre a potencialidade que os avanços científicos e técnicos abririam para uma existência mais plena e a miséria da existência presente[23], mas sim em pretender utopicamente que esta possa ser superada previamente à conquista do poder por parte dos trabalhadores e a expropriação da burguesia.
Tempo livre e a luta pela redução da jornada de trabalho
Poderia, entretanto, argumentar-se o seguinte: dado que na relação salarial o trabalho é inevitavelmente alienado, não seria paradoxalmente benéfico para a emancipação social o processo que lança fora milhares do mercado de trabalho, já que possibilitaria que os sujeitos alcançassem alternativas produtivas distintas à capitalista e pudessem dispor de tempo livre? Para quem pensa assim (Gorz, Rifkin etc.), todo retrocesso dos assalariados não seria mais que um progresso na liberação do trabalho. Vejamos. Esta concepção parte do erro original de deixar de lado “a dimensão totalizante e abarcadora do capital, que engloba desde a esfera da produção até o consumo, desde o plano da materialidade ao mundo das idéias”[24], isto é, supõe falsamente que no capitalismo poder-se-ia dispor autonomamente do “tempo livre”, como se a diversão e o ócio não se encontrassem hoje também sob o controle e o domínio do capital. Apesar de toda sua fraseologia “radical”, o que aqui se termina propondo é uma série de medidas que poderiam ser de grande utilidade para os governos “neoliberais” ou de “terceira via” (como a “economia solidária” e do “terceiro setor” de Rifkin e Gorz) na hora de atenuar os custos de suas políticas antioperárias, já que enquanto deixam o controle dos principais recursos econômicos à produção dos monopólios capitalistas apresentam como protótipos do “trabalho criativo e solidário” a assistência a idosos (funcional à redução dos orçamentos de saúde pública e seguridade social) ou a produção para os vizinhos de “pão integral”... Mesmo que a visão de Negri seja um pouco mais sofisticada, comunga do essencial dessa postura que busca nos “não assalariados” o “novo sujeito antagonista”. As implicações políticas negativas desse raciocínio são evidentes. Os sinais de decomposição social criados pelo domínio capitalista (sintoma de seu esgotamento histórico) são apresentados como produto de uma evolução progressiva das forças produtivas. Ou seja, ao invés da incapacidade do capitalismo para resolver a “crise de acumulação” que vive desde meados dos anos 70 teríamos sua capacidade para transformar-se em formas “pós-capitalistas”. Desta forma, já que seriam as novas condições produtivas as que levam à perda de importância do trabalho assalariado em geral, e do fabril em particular, perderia sentido enfrentar o desemprego de massas exigindo a distribuição das horas de trabalho entre todas as mãos disponíveis (a “escala móvel de horas de trabalho”) já que o “novo paradigma produtivo” mesmo excluiria tal possibilidade. Esta visão não apenas tem o efeito de absolver os governos capitalistas das políticas que provocam o desemprego de massas (já que seria produto de condições “estruturais” que estão além de suas forças) mas também torna natural a fragmentação que o capital cria na classe operária (entre empregados e desempregados, estáveis e precários etc.) e deixa de lado uma arma fundamental – a luta pela redução da jornada de trabalho com salários equivalentes aos custos dos gastos de uma família[25] – para enfrentar as atuais políticas burguesas. Negri, ao contrário de sustentar esta demanda junto com a de planos de obras públicas controlados pelos trabalhadores[26], propõe como eixo a reivindicação de uma “renda universal cidadã”, uma renda mínima que corresponderia a todos os habitantes de um país pelo simples fato de sê-lo, independentemente da atividade que desempenham. “Renda universal cidadã” que joga o papel ideológico de ser o “cavalo de Tróia” da política de instaurar a “renda mínima de sobrevivência” que alguns assessores de distintos governos propõem, buscando rebaixar o piso dos salários e perpetuar a situação de existência de desemprego de massas, por um lado – com desempregados recebendo um miserável seguro de existência –, e trabalhadores empregados nas condições de precarização, flexibilização e jornadas extenuantes hoje existente. Estas posições constituem, assim, um monumental embelezamento das conseqüências causadas pela profunda ofensiva anti-operária das últimas décadas que se conhece com o nome de “neoliberalismo”, legitimando pela “esquerda” as políticas que produzem a diminuição do poder dos assalariados como força antagônica ao domínio capitalista. Não podem ser qualificadas a não ser como reacionárias, sem que isto implique embelezar a “sociedade do trabalho” falando das virtudes “socializadoras do trabalho”, deixando de lado seu caráter de trabalho assalariado (isto é, inevitavelmente alienado), como têm feito os teóricos social-democratas saudosos do “estado de bem-estar” ou os stalinistas predicando o “culto ao trabalho”. Ao contrário, como sustenta Marx em O Capital, “o reino da liberdade apenas inicia ali onde termina o trabalho imposto pela necessidade e pela coação dos fins externos; fica, pois, dada a natureza das coisas, além da órbita da verdadeira produção material. (...) À medida que se desenvolve (o homem civilizado, N. do R.), desenvolve-se com ele suas necessidades, se extende este reino da necessidade natural, porém ao mesmo tempo se extendem também as forças produtivas que satisfazem aquelas necessidades. A liberdade, neste terreno, somente pode consistir em que o homem socializado, os produtores associados, regulem racionalmente seu intercâmbio de matérias com a natureza, o ponham sob seu controle comum ao invés de deixar-se dominar por ele como um poder cego, e o levem a cabo com o menor gasto possível de forças e nas condições mais adequadas e mais dignas de sua natureza humana. Contudo, com tudo isso, este será sempre um reino da necessidade. No outro lado de suas fronteiras começa a liberação das forças humanas que se considera como fim em si, o verdadeiro reino da liberdade, que no entanto somente pode florescer tomando como base aquele reino da necessidade. A condição fundamental para isso é a redução da jornada de trabalho.”
Parte II – MARXISMO CLÁSSICO versus
“MARXISMO” AUTONOMISTA: DUAS ESTRATÉGIAS NA LUTA PELO COMUNISMO
A luta pelo poder político
No final dos anos 20, a controvérsia entre a teoria-programa da revolução permanente e a defesa stalinista da utopia reacionária do “socialismo num só país” marcaria uma oposição que persistiria ao longo de todo o século XX. A teoria da revolução permanente expressou um desenvolvimento qualitativo da estratégia da revolução proletária, incorporando as conclusões das revoluções das duas primeiras décadas do século XX[27]. As formulações stalinistas foram, ao contrário, a negação destas lições.
Logo após a Segunda Guerra, o stalinismo foi além – do visto por Trotsky, nos anos 30 – no desempenho de seu papel contra-revolucionário, firmando um pacto com o imperialismo norte-americano de sustentação da ordem mundial, transformando-se num ator central da chamada “ordem de Yalta”. Dezenas de processos revolucionários foram barrados em seu desenvolvimento pela ação do stalinismo e aquelas revoluções que “foram mais além” do pretendido pelos stalinistas (Iugoslávia, China, Cuba, Vietnã...), foram bloqueadas em seu desenvolvimento revolucionário ao se impor nestes estados regimes que copiavam a dominação burocrática do modelo stalinista e adotavam sua mesma estratégia de “socialismo num só país”.
O colapso dos regimes stalinistas, entre 1989 e 1991, com o avanço das burocracias governantes como abertos impulsionadores da restauração capitalista, demonstrou a bancarrota completa desta política, dando, pela negativa, razão histórica às afirmações de Trotsky de que se uma revolução política não devolvesse o poder aos trabalhadores a manutenção do domínio burocrático levaria à restauração capitalista. Tal como o fizera o stalinismo, ainda que de um ângulo oposto, hoje as formulações de Negri sobre o “comunismo sem transição” constituem uma estratégia que enfrenta a dinâmica revolucionária proposta na revolução permanente. Em primeiro lugar, se coloca o desaparecimento da luta pela conquista do poder político. Em Negri as supostas mutações das condições da produção capitalista estão acompanhadas da passagem da “sociedade disciplinar” assinalada por Foucault à “sociedade de controle” que este autor apenas anteviu e que Deleuze e Guattari colocaram explicitamente. Na “sociedade de controle” o exercício do poder está em todas as partes, interiorizado na subjetividade do indivíduo, que reproduz o poder em cada ação: um verdadeiro “biopoder”. Esta mesma difusão do poder em todos os aspectos da produção da vida se vê na passagem do “imperialismo” ao “império”, cujo domínio inatingível é visto em sua impossibilidade de conseguir plena expressão jurídica. Não mais seria a luta pelo poder político a alavanca para avançar à liberação dos explorados mas sim a luta para transformar o sentido da produção da vida mesma. Esta afirmação encontra algo que a justifique na realidade da luta de classes? Não encontramos nenhuma justificativa empírica para isso. O controle do poder político dos distintos estados nacionais continua sendo um instrumento fundamental para que o capital exerça seu domínio, tanto nos países imperialistas centrais como na periferia “semicolonial”. Por um lado, pela função insubstituível que têm os distintos estados na repressão às classes subalternas locais. As funções de “polícia mundial” que vêm tendo as intervenções das “forças multinacionais”[28] não substituem esta função dos estados em nível local, sendo sim complementares. O capital mais concentrado continua numa estreita relação com os estados imperialistas mais poderosos e é através destes que impõe aos estados mais débeis e espoliados relações cada vez mais subordinadas. Basta ver o papel de “lobbistas” de primeira linha das embaixadas norte-americana, francesa, britânica, japonesa, alemã ou espanhola nos processos de privatizações ou concessões em algum país semicolonial. E, em particular, como os Estados Unidos se beneficiam do controle exercido sobre o FMI ou o Banco Mundial para impor suas políticas ao resto do mundo. Ou seja, a “mediação política” pode ser qualquer coisa, mas não foi extinguida. E, por isso, a estratégia da classe trabalhadora não pode deixar de buscar a destruição desse aparato de dominação para substitui-lo por um que lhe possibilite exercer seu próprio poder e tomar os primeiros passos na construção do socialismo. Cada grande intervenção do movimento de massas coloca em primeiro plano o problema do poder político. Foi precisamente a falta de ações revolucionárias nos anos 80 e na primeira metade dos 90 o que possibilitou o auge de estratégias que evitavam ou diluíam a centralidade da luta pelo poder estatal, que se incrementaram acompanhadas da propaganda burguesa que apresentou o colapso dos regimes stalinistas como a mostra do fracasso de qualquer tentativa dos trabalhadores em apoderar-se do poder. Nos referimos ao auge dos chamados “movimentos sociais” e da “estratégia local”, que se desenvolveram sobre a derrota do combate revolucionário iniciado em 68. Teoricamente, esta política completamente reformista foi justificada com a existência de “micropoderes” que deviam ser combatidos particularmente, tomando como modelo as análises de Foucault sobre a “microfísica do poder”. Negri se distancia desta visão enquanto critica as estratégias “localistas” de resistência à globalização e postula que toda luta está, na realidade, unificada pelo “desejo de comunismo” da multidão e seu desfio comum ao “Império”, porém falta que esta unidade de propósitos se faça consciente e comunicável. Entretanto, compartilha da idéia de um poder desterritorializado e se nega em colocar no centro a luta pelo poder político[29]. O certo é que desde que em 1995 a grande greve dos trabalhadores públicos na França marcasse um verdadeiro ponto de inflexão na situação da classe operária em nível internacional, temos visto com maior freqüência importantes ações de massas chegando a desarticular os regimes burgueses: Equador em 1997, com a greve geral que derrubou Bucaran e, de novo, no início de 2000, com o levante camponês que encerrou o governo Mahuad e instaurou uma efêmera “Junta de Salvação Nacional” antes que se reconstituísse o poder burguês, graças à ação dos “militares nacionalistas”; Albânia, em 1997, e, em menor medida, a Sérvia em 2000. Em todos esses acontecimentos que a classe operária não esteve no centro das ações e a ausência (ou o estado embrionário) do desenvolvimento de organismos de democracia direta dos explorados impediram que em meio a esses processos se amadurecesse entre os trabalhadores uma alternativa revolucionária que lhes permitisse conquistar o poder. Em nenhum desses casos existiu, tampouco, um partido operário revolucionário e internacionalista capaz de aproveitá-los. Assim, ainda que as massas tenham acumulado experiência de luta, o poder foi entregue a seus inimigos de classe. A grande lição, então, é que se os trabalhadores e as massas exploradas não se preparam para lutar para impor seu próprio poder nas situações de crise são outros que ocuparão o espaço.
A sociedade de transição
Assinalada a impossibilidade de fazer desaparecer a luta pelo poder político, se a classe trabalhadora conquistasse o poder poderia avançar na construção do comunismo sem necessidade de qualquer transição? Este não é um questionamento menor, pois se torna um aspecto central da estratégia marxista[30]. Pergunta, Negri: Isto nos deve levar a questionar, entretanto, a experiência de burocratização dos estados operários? Não foi em nome da ditadura do proletariado que os burocratas justificaram o exercício do despotismo laboral nas fábricas da ex-URSS, incluindo formas de trabalho sem descanso como o stakhanovismo? Era inevitável tudo isso (a burocratização da URSS, (N.do.R.)? “Respondem positivamente a esta pergunta todos aqueles que, do lado do stalinismo, porém também do lado da teoria do desenvolvimento capitalista sustentam que unicamente uma ‘revolução a partir de cima’ havia podido determinar a solução do subdesenvolvimento, melhor, a formação do modo de produzir moderno na Rússia”.[31] Ao contrário “às mesmas interrogações devem responder negativamente todos aqueles que, num poder constituinte que reassume a regra de empresa, não vêem uma clausura, senão, melhor, uma nova e mais alta abertura da potência. Sobre o terreno da regra de empresa, sobre a que Marx havia obrigado o poder constituinte, sobre aquele mesmo terreno no qual se desenvolveu o compromisso leninista, o que importava era a contradição, sua contínua reabertura, a vitalidade da função negativa e progressiva do poder constituinte. A regra de empresa não era um fetiche, senão um novo terreno sobre o qual a práxis constitutiva podia e devia reabrir-se continuamente. E isto encontra definitiva demonstração no fato de que, como queira que tenham sido as coisas na Rússia, esta necessária e contraditória relação entre o poder constituinte e a regra de empresa não pode ser evitada. Hoje em dia não é imaginável um exercício qualquer de poder constituinte sem que se libere da necessidade da relação com a empresa. Este terreno descoberto por Marx é o terreno do comunismo”[32]. Se bem que o teórico autonomista acerta em negar a inevitabilidade da dominação burocrática, falha em acreditar que o “compromisso leninista”, no dizer de Negri a síntese entre “espontaneidade democrática e racionalidade instrumental” (ou seja, encomendar aos sovietes a direção da produção), poderia ser esquecido. Este “compromisso” não apenas foi inevitável em seu tempo, devido ao atraso russo[33], mas também o seria hoje em dia, variando obviamente de acordo com o papel na economia mundial dos distintos países, o nível de desenvolvimento tecnológico existente e os ritmos de desenvolvimento da revolução socialista internacional. Uma revolução triunfante nos estados capitalistas mais desenvolvidos brindará possibilidades imensamente superiores à classe operária para avançar mais rapidamente ao socialismo. Uma revolução num país de desenvolvimento “intermediário” ou “atrasado” (ainda mais quando se enfrentar com condições de isolamento econômico e político) deverá fazer, inevitavelmente, mais concessões e compromissos e o perigo da burocratização será superior. Enfrentará maiores contradições internas, como ocorreu com a União Soviética, porém, sem que isto implique que inevitavelmente a história voltará a se repetir. Dependerá da experiência soviética prévia das massas, sua disposição à ação e, fundamentalmente, de sua relação com a luta de classes internacional. Ainda que a classe trabalhadora no poder tomaria medidas que desde o início transformariam a relação na organização do trabalho e da vida social em seu conjunto, seria inevitável reproduzir por um período certos aspectos herdados da sociedade anterior. Mesmo nas economias mais desenvolvidas, que dominam a economia mundial, o período da sociedade de transição é inevitável, já que, como propugnava Marx, “trata-se, aqui, não de uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre sua própria base, mas de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista e que, portanto, apresenta todavia, em todos os seus aspectos, no econômico, moral e intelectual, as marcas da velha sociedade de cujas entranhas procede.”[34] A hiper-maturidade contemporânea das forças produtivas, que segundo Negri permitiriam livrar-se da “necessidade da relação com a empresa”, é uma apreciação unilateral da realidade que evita responder às encruzilhadas verdadeiras que deve enfrentar o desenvolvimento da sociedade socialista, no qual a liberação do tempo livre será um processo cuja evolução dependerá das forças produtivas que os trabalhadores tenham sob seu controle.[35]
A dimensão internacional da “aposta leninista”
No balanço da grandeza e da crise da “aposta leninista”[36] um elemento, o compromisso com a “regra de empresa”, recebe um valor sem limites e é abstraído do conjunto das determinações históricas. Negri declina de mencionar qualquer relação entre a consolidação da burocratização e os acontecimentos da luta de classes em nível internacional. A inevitabilidade do período de transição não somente é produto das contradições internas de toda formação social senão do fato de que a revolução mundial não é um acontecimento simultâneo, o que estabelece uma dialética particular entre o “início” do processo da revolução socialista com a tomada do poder em um país ou série de países e seu “coroamento” com o triunfo da nova sociedade em escala mundial. No caso específico da revolução russa, ainda que seja uma questão elementar, recordemos que a aposta bolchevique consistia em que o triunfo da revolução russa detonasse a revolução alemã. Esta perspectiva não se materializou. As derrotas da classe operária mundial, ocorridas no imediato pós-guerra (Alemanha em 1929, 1921 e 1923; Hungria em 1929; Bulgária em 1923; a greve geral inglesa de 1926; a segunda revolução chinesa de 1925-27...), impuseram o isolamento econômico e político da União Soviética, favorecendo o triunfo da política nacionalista do “socialismo num só país” defendida por Stalin. A burocracia, por sua vez, não era neutra nestas derrotas, mas praticava uma política pragmática de “zigue-zagues” (da dissolução no Kuomitang ao ultra-esquerdismo do “terceiro período”; deste ao oportunismo das “frentes populares”) que provocava novos tropeços do proletariado (o triunfo do nazismo na Alemanha, a derrota da revolução espanhola). Como deixar de lado que uma coisa era assinalar a maturidade do proletariado russo para apoderar-se do poder e outra distinta era sustentar que a Rússia, por si mesma, como fez Stalin, poderia chegar ao comunismo? Paradoxalmente, então, Negri, ao não se colocar sequer o problema da dialética entre “construção do socialismo” no plano nacional e desenvolvimento da revolução internacional, acaba coincidindo com os stalinistas em situar a explicação do ocorrido com a revolução de outubro desde um plano estritamente nacional.[37]
A democracia soviética
A impossibilidade de materializar um “comunismo sem transição” não torna indiferente, de maneira alguma, a política que se venha a ter durante o período de transição. Que assinalemos que a luta pela conquista do poder político deve estar no centro da estratégia revolucionária e a inevitabilidade do processo de transição não significa se identificar com “qualquer poder” alternativa ao da burguesia, como tem sido os regimes stalinistas com seus cultos ao trabalho e ao líder, não somente em sua expressão prototípica da degeneração do estado operário soviético mas também nos processos revolucionários onde a burguesia foi expropriada e surgiram estados operários “deformados”. Não é inevitável repetir a tragédia das revoluções do pós-guerra, onde os exércitos guerrilheiros (Iugoslávia, China, Cuba, Vietnã...) que dirigiram levantes de massas – essencialmente camponeses e semi-proletários –, edificaram regimes similares ao dominante na União Soviética sob Stalin e bloquearam o desenvolvimento ao socialismo de ditas revoluções. Estes regimes[38] trasladaram a estrutura vertical de “partido-exército” ao aparato de estado, impedindo todo real exercício de democracia direta das massas e adotaram como própria a pseudoteoria do “socialismo num só país”, com a qual cada burocracia local justificava a defesa de seus privilégios acima dos interesses da classe operária mundial, incluindo pactos infames com o poder imperialista norte-americano, como os casos da China e Iugoslávia. Transformaram o nome do comunismo em sinônimo de opressão burocrática e com isso prestaram um imenso favor à propaganda imperialista. A dialética da permanência da revolução não foi somente bloqueada ao deter-se no terreno nacional, senão que a dominação burocrática reproduziu muitos dos piores vícios opressivos da sociedade burguesa, como o nacionalismo, o machismo, a homofobia e o culto à família patriarcal. Ao não funcionar os sovietes, tampouco a planificação da economia foi realizada democraticamente, de acordo com a opinião e decisão do conjunto das massas trabalhadoras, mas sim em virtude da decisão do departamento burocrático designado para tal fim, com o resultado não apenas de reproduzir os piores desperdícios do trabalho social mas de forçar os trabalhadores a todo tipo de sacrifícios sem que estes tivessem a mínima possibilidade de expressar seu acordo ou desacordo com estas decisões[39].
Na sociedade de transição o pleno funcionamento dos sovietes é o único meio para conseguir um equilíbrio entre as necessidades da produção social, condicionados pelo nível das forças produtivas sociais, e o progressivo avanço na redução da jornada de trabalho (e, portanto, no incremento do “tempo livre”). Sem democracia soviética não há planificação democrática da economia. Como assinalava Trotsky, marcando a trava absoluta em que se transformara a dominação burocrática na hora de passar de uma produção “intensiva” a uma “extensiva”: o papel progressista da burocracia soviética coincide com o período de assimilação. “O grande trabalho de imitação, de enxerto, de transferência, de aclimatações tem sido feito no terreno preparado pela revolução. Até agora não houve inovação no domínio das ciências, da técnica ou da arte. Pode-se construir fábricas gigantes segundo modelos importados do estrangeiro, por mandato burocrático, e pagando-as, por certo, o triplo do preço. Porém, enquanto se vá mais longe mais se tropeçará com o problema da qualidade, que escapa à burocracia como uma sombra. Parece que a produção está marcada com o carimbo sombrio da indiferença. Na economia nacionalizada, a qualidade supõe a democracia dos produtores e dos consumidores, a liberdade de crítica e de iniciativa, coisas incompatíveis com o regime totalitário do medo, da mentira e da adulação. Ao lado do problema da qualidade se colocam outros, mais grandiosos e mais complexos, que podem ser agrupados na rubrica da ação criadora técnica e cultural. Um filósofo antigo sustentou que a discussão era a mãe de todas as coisas. Onde o choque de idéias é impossível, não se podem criar novos valores. A ditadura revolucionária, admitimos, constitui em si mesma uma severa limitação à liberdade. Justamente por isso, as épocas revolucionárias jamais têm sido propícias à criação cultural, para a qual preparam o terreno. A ditadura do proletariado abre ao gênio humano um horizonte tanto mais vasto quanto mais deixe de ser ditadura. A civilização socialista não se desenvolverá a não ser com a agonia do Estado. Esta lei simples e inflexível implica a condenação sem qualquer recurso possível do atual regime político da URSS. A democracia soviética não é uma reivindicação política abstrata ou moral. Passou a ser um assunto de vida ou morte para o país.”[40] O plano socialista não é, então, a chamada “economia de comando” stalinista, mas um produto da atividade autoconsciente da sociedade, onde sua formulação inicial por parte dos organismos estatais dedicados a tal fim devia ser continuamente revisada de acordo à opinião das massas e, por um período, das próprias correções que exija uma utilização subordinada de alguns mecanismos de mercado como a fixação de certos preços. Esta planificação democrática dos recursos econômicos somente é possível de realizar com a conquista do poder por parte dos trabalhadores e a expropriação da burguesia, é a única verdadeira alternativa ao domínio da “anarquia da produção” capitalista. Então, ainda que não haja antídoto infalível contra a possibilidade de burocratização de novas revoluções há, sim, orientações políticas que favorecem ou não este processo.
Negri tem razão quando afirma que o comunismo não pode ser mais que a plena liberação do “trabalho vivo” e, se bem seja falso que o comunismo pode ser construído aqui e agora, é certo que este começa a se desenvolver na própria sociedade de transição. O papel dos sovietes como organismos que fossem a forma do estado “que já não é um estado” (colocado por Lênin em “O Estado e a revolução”[41] e posto em primeiro plano por Trotsky em “A revolução traída”), devem estar na primeira linha da política revolucionária. Seu desenvolvimento e a familiarização das massas com a democracia soviética é o único antídoto possível (em combinação com a ação do partido revolucionário), no terreno “interno”, para combater as tendências à burocratização do estado pós-revolucionário. Porém, como assinalamos, a burocratização de um estado operário não é produto de um mero processo interno, pois depende, em última instância, dos desenvolvimentos da revolução socialista no terreno internacional. E neste terreno a caricatura, apresentada por Negri, de estados nacionais superados pela história e forças produtivas homogeneamente hiper-maduras na era do “Império” resulta num internacionalismo abstrato (superado historicamente o imperialismo que sentido tem no esquema de Negri o antiimperialismo?), incapaz de responder às complexas e labirínticas expressões da luta de classes pelas quais as massas buscam exercer seu “poder constituinte”. Também aqui a perspectiva internacionalista compreendida na teoria-programa da revolução permanente, continua sendo muito mais atual que as novidades do filósofo italiano.
Dar por solucionados os problemas reais a que tem que responder a tática e a estratégia revolucionária só pode servir para entorpecer a perspectiva de emancipação humana prevista pelo autor do “Manifesto Comunista”: “... Na fase superior da sociedade comunista, quando tenha desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não seja somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos seus aspectos, cresçam também as forças produtivas e fluam com todo seu caudal os mananciais da riqueza coletiva, somente então poderá sobrepujar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês, e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: ‘De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades!’.”
[1] Em contraposição a eles, Trotsky pôde prever doze anos antes, com grande precisão, a dinâmica da luta de classes que tomaria a revolução russa (veja-se seu genial trabalho “Resultados y perspectivas”), e Lenin colocou, tal como ocorreria, que após a guerra viria a revolução.
[2] É o caso, por exemplo, de Ernest Mandel, que durante todo um período sustentou que estávamos numa espécie de terceira fase do desenvolvimento capitalista, distinta do imperialismo clássico, a que chamou “neocapitalismo” seguindo um termo então em moda. Logo, Mandel retrocedeu parcial e ecleticamente desta tese em seu conhecido trabalho “El capitalismo tardio”, onde prenunciava o fim do “boom”.
[3] Enzo Rullani, “El capitalismo cognitivo: déjà vu?”, Multitudes nº 2.
[4] Antonio Negri, “Exílio”, Ed. Viejo Topo, 1998.
[5] Esta visão que apresenta um desenvolvimento linear de uma situação de hipermaturidade das forças produtivas é oposta à teoria que melhor dá conta das contradições do desenvolvimento histórico. Nos referimos à teoria do “desenvolvimento desigual e combinado” formulada originalmente por Trotsky para dar conta das peculiaridades que tornaram possível o triunfo da revolução proletária num país de desenvolvimento capitalista atrasado como a Rússia, antes que nos mais avançados países da Europa Ocidental: “As leis da história não têm nada de comum com o esquematismo pedante. O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, não se revela, em parte alguma, com a evidência e a complexidade com que a patentiza o destino dos países atrasados. Açoitados pelo chicote das necessidades materiais, os países atrasados se vêem obrigados a avançar a saltos. Desta lei universal do desenvolvimento desigual da cultura se deriva outra que, na falta de nome mais adequado, qualificaremos de lei do desenvolvimento combinado, aludindo à aproximação das distintas etapas do caminho e à confluência de distintas fases, ao amálgama de formas arcaicas e modernas. Sem acudir a esta lei, enfocada, naturalmente, na integridade de seu conteúdo material, seria impossível compreender a história da Rússia ou a de qualquer outro país de avanço cultural atrasado, qualquer que seja seu grau.” (“Historia de la Revolución Rusa”, Capítulo Primero, Ediciones Sarpe, pág. 33.) Esta teoria ou “lei” é o ponto de partida fundamental, a partir do qual, ampliando seus alcances, interpretar o desenvolvimento geral do capitalismo imperialista contemporâneo, fora das visões evolucionistas ou catastrofistas. Ao não partir desta visão dialética os erros unilaterais cometidos por Negri tornam-se inevitáveis.
[6] Michel Husson, “Fin del trabajo o reducción de su duración?”.
[7] Michel Husson, “Mundialización” (9/4/98).
[8] Ricardo Antunes, “Los nuevo proletários del mundo em el cambio de siglo”, em Realidad Económica nº 177, janeiro de 2001. Ver também seu livro “Adiós al trabajo?”.
[9] Segundo dados do Banco Mundial de 1997, existem hoje 2,806 bilhões de trabalhadores assalariados, dos quais 550 milhões trabalham na indústria e 850 milhões nos serviços. Dos 1,4 bilhão restantes que trabalham na agricultura, um número crescente o faz sob relações sociais capitalistas modernas, além das relações arcaicas ou semifeudais. O desemprego afeta cerca de 800 milhões em todo o mundo. O processo de urbanização tem sido impressionante. Hoje, 77% da população dos países de maior renda vivem nas cidades, enquanto que nos países de renda média e baixa são 40%. O setor assalariado está envolto, por sua vez, por um número de semiproletários, isto é, quem ganha a vida variando combinações de pequeno comércio, emprego por conta própria, subsistência em base à medicância e às vezes trabalho assalariado. Pela primeira vez, os trabalhadores assalariados e sua periferia semiproletária são a maioria da população mundial. Basta comparar com o 1,7 milhão de trabalhadores assalariados (17% da população em idade de trabalhar) que existia na indústria da Inglaterra e País de Gales em 1867, quando Marx publicou o primeiro tomo de “O Capital”. Ou com a composição social da Alemanha de princípios do século 20, onde 34% da força de trabalho era exercida por conta própria ou para suas famílias, 35% eram trabalhadores agrícolas, entre os quais a maioria o fazia sob relações feudais, e somente 27% da população vivia em cidades, dos quais apenas 11% em grandes cidades de mais de 300.000 habitantes. Ainda, apesar da queda da quantidade de sindicalizados em vários países, os trabalhadores sindicalizados somam, segundo a OIT, em 1995, 164 milhões contra 250 mil na Grã Bretanha em 1869 (eram pouco mais os sindicalizados em outros países), com um importante crescimento entre os trabalhadores asiáticos, que somam 34 milhões frente aos 41 milhões na Europa Ocidental.
[10] Michel Husson, “Nueva economia: capitalismo siempre”, em Critique Communiste nº 160.
[11] Idem.
[12] Idem.
[13] Enzo Rullani, op. cit.
[14] Idem.
[15] Michel Husson, op. cit.
[16] Maurício Lazzarato e Antonio Negri, “Trabajo inmaterial y subjetividad”, em Futur Antérieur nº 6, 1991.
[17] “Na era prévia a categoria de proletariado se centrava, e por momentos estava efetivamente subsumida, na classe trabalhadora industrial, cuja figura paradigmática era o trabalhador varão da fábrica massiva. A essa classe trabalhadora industrial era assignada, com freqüência, o papel principal sobre outras figuras do trabalho (tais como o trabalho camponês e o trabalho reprodutivo), tanto nas análises econômicas como nos movimentos políticos. Hoje em dia, essa classe quase tem desaparecido de vista. Não tem deixado de existir, porém tem sido substituída de sua posição privilegiada na economia capitalista e sua posição hegemônica na composição da classe do proletariado. O proletariado já não é o que era, mas isto não significa que tenha desaparecido. Significa, ao contrário, que nos enfrentamos outra vez com o objetivo analítico de compreender a nova composição do proletariado como uma classe. O fato de que sob a categoria de proletariado entendemos a todos aqueles explorados por e sujeitos à dominação capitalista não indica que o proletariado seja uma unidade homogênea ou indiferenciada. Está, ao contrário, cortada em várias direções por diferenças e estratificações. Alguns trabalhos são assalariados, outros não; alguns trabalhos estão limitados dentro das paredes da fábrica, outros estão dispersos por todo o ilimitado terreno social; alguns trabalhos se limitam a oito horas diárias e quarenta horas semanais, outros se expandem até ocupar todo o tempo da vida; a alguns trabalhos se fixa um valor mínimo, a outros se exalta ao cume da economia capitalista (...) entre as diversas figuras da produção hoje ativas, a figura da força de trabalho imaterial (envolta na comunicação, cooperação e produção e reprodução de afetos) ocupa uma posição crescentemente central, tanto no esquema da produção capitalista, quanto na composição do proletariado. Nosso objetivo é assinalar aqui que todas estas diversas formas de trabalho estão sujeitas de igual modo à disciplina capitalista e às relações capitalistas de produção. É este fato de estar dentro do capital e sustentar o capital o que define o proletariado como classe.” (Michael Hardt e Antonio Negri, “Imperio”, parte 1, ponto 1.3, “Alternativas dentro del Imperio”). Notemos como Negri passa aqui de uma noção muito restrita do conceito de proletariado (os operários industriais) a uma tão ampla (o conjunto das massas exploradas) que se dissolve toda especificidade do mesmo. Assim, o campesinato se transforma em “proletário”, o mesmo que o conjunto da pequena burguesia ou camadas específicas como o estudantado, por uma mera operação teórica. O peculiar da exploração em forma de trabalho assalariado, que era o elemento distintivo do proletariado segundo Marx, perde, então, toda importância. Contrariamente a Negri, acreditamos que a aplicação do conceito “classe operária” ou “proletariado”, no sentido amplo, deve ser utilizada em referência “àqueles que para subsistir se vêem obrigados a vender sua força de trabalho”.
[18] Maurício Lazzarato e Antonio Negri, op. cit.
[19] “Por que, a partir de 68, os estudantes tendem a representar de maneira permanente e mais ampla o ‘interesse geral’ da sociedade? Por que os movimentos operários e os sindicatos penetram nas brechas abertas por estes movimentos? Por que estas lutas, ainda que breves e desorganizadas, avançam ‘imediatamente’ ao nível político? Para responder esta questão, é necessário ter em conta que a ‘verdade’ da nova composição de classe aparece mais claramente entre os estudantes verdade imediata, isto é, em seu estado nascente, de forma tal que seu desenvolvimento subjetivo não está ainda tomado nas articulações do poder. A autonomia relativa do capital determina entre os estudantes, entendidos como grupo social representando o trabalho vivo em estado virtual, a capacidade de designar o novo terreno do antagonismo. A ‘intelectualidade de massas’ se constitui sem ter necessidade de passar através da ‘maldição do trabalho assalariado’. Sua miséria não está ligada à expropriação do saber mas, ao contrário, à potência produtiva que ela concentra, não somente sob a forma de saber mas sobretudo tanto quanto órgão imediato da práxis social do processo da vida real. A ‘abstração capaz de todas as determinações’, segundo a definição marxiana, desta base social permite a afirmação de uma autonomia de projeto, por sua vez positivo e alternativo.” (Mauricio Lazzarato e Antonio Negri, op. cit.)
[20] Esta sorte de “dualização” na qualificação da classe trabalhadora pode ser vista, por exemplo, na crise dos sistemas educativos “universais” desenvolvidos no pós-guerra (e, em particular, a débâcle em vários países da educação técnica e industrial de segundo nível) que se explica em parte por esta falta de homogeneidade nas exigências do capital na qualificação da força de trabalho. Cada vez mais as próprias plantas industriais são as encarregadas de capacitar seus operários.
[21] Conceito que, por outra parte, politicamente opera num sentido similar ao de “sociedade civil” utilizado pelos teóricos social-democratas que tanto Negri critica.
[22] De passagem, assinalaremos que esta luta dos setores mais explorados do campesinato é um desmentido a mais às teses da “intelectualidade de massas”. Por mais que estes movimentos façam uso de Internet em suas mobilizações e o subcomandante Marcos seja uma figura altamente mediática, não se pode dizer que as condições miseráveis de existência contra as que se rebelam os indígenas chiapanescos, equatorianos ou bolivianos sejam expressão do “general intellect”... Ao contrário, a variedade de motivos que lançam os camponeses à luta têm seu ponto comum no processo de concentração da propriedade agrária, isto é, na disputa entre os latifundiários e os capitalistas por seu meio de produção fundamental: a terra.
[23] O título do livro de Gorz – “Misérias del presente, riquezas de lo posible”, bem poderia ter sido de um ensaio marxista. A lástima é que a “riqueza do possível” para o autor não seja mais que caricaturescos emplastos à existência alienada contemporânea, como os “círculos de cooperação” ou a reprodução do modelo de estado hindu de Kerala...
[24] Ricardo Antunes, “Adiós al trabajo?”, Editorial Antídoto, pág. 78.
[25] Gorz, oposto a Negri, vem sustentando a necessidade da redução da jornada de trabalho como uma demanda central. Entretanto, esta é colocada por fora de toda estratégia tendente a que os trabalhadores tomem o poder político. Termina, portanto, sendo compatível com a política sustentada pelo governo da “esquerda plural” na França, cuja “lei das 35 horas” reduz a jornada de trabalho... sob a condição de implementar a flexibilização trabalhista e perda de conquistas operárias anteriores. Os conflitos em torno à aplicação desta lei tem-se sucedido na França em distintas fábricas desde sua aprovação.
[26] Reivindicações que demonstram que o desemprego não é um destino inevitável mas produto de determinas políticas capitalistas que uma política independente da classe operária pode superar. Esta política apenas pode ser impulsionada até o fim por um governo dos trabalhadores.
[27] Na formulação realizada em 1929, Trotsky extendia ao conjunto dos países de desenvolvimento burguês atrasado (como os coloniais e semicoloniais) a conclusão postulada para a Rússia de que o proletariado dirigindo o conjunto das massas exploradas, como o campesinato, na luta pela terra e pela emancipação nacional não se deteria no estágio “democrático” da revolução e se veria obrigado desde o começo a encarar a transformação das relações de propriedade: “A revolução democrática se transforma diretamente em socialista, convertendo-se com isso em permanente”. A conquista do poder não significava o “coroamento” da revolução, como assinalava Stalin, senão sua iniciação, começando um período de lutas internas e exteriores, que acompanham a transformação progressiva de todas as relações sociais herdadas da sociedade anterior, processo que é inevitável tratando-se de “um velho país capitalista que tenha passado por uma longa época de democracia e parlamentarismo” ou de “um país atrasado, que tenha realizado recentemente sua transformação democrática”. Trotsky distinguia, por sua vez, entre a possibilidade de que a classe trabalhadora dos países de desenvolvimento capitalista atrasado chegasse em certas ocasiões ao poder antes das principais potências imperialistas, da impossibilidade de avançar antes que estas ao socialismo. Este não podia triunfar no marco das fronteiras nacionais e neste sentido “a revolução socialista se converte em permanente num sentido novo e mais amplo da palavra: no sentido de que somente se consuma com a vitória definitiva da nova sociedade em todo o planeta”. As conclusões políticas desta teoria e os avanços teórico-programáticos de Trotsky na década seguinte se encontram sintetizados no documento fundamental apresentado por Trotsky à Conferência de Fundação da IV Internacional, conhecido como “Programa de Transição”.
[28] Na década de 90, o caráter imperialista de tais intervenções freqüentemente tentou-se dissimular realizando-as sob os auspícios da ONU.
[29] Entre os movimentos políticos mais influentes na atualidade, o EZLN mexicano é quem mais tem dado publicidade a sua negação em lutar pelo poder, uma estratégia com a qual na realidade tem-se moldado aos limites postos pela “transição negociada” com a qual o domínio do México por parte da oligarquia local ligada ao imperialismo norte-americano pôde reciclar-se do decrépito regime do PRI a um novo regime hoje em plena construção sob o governo de Fox.
[30] Marx, em “Crítica ao Programa de Gotha”, sustentava: “Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista permeia o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro que a ditadura revolucionária do proletariado...” No mesmo sentido, Lênin afirmava em “O Estado e a revolução” que “o primeiro que tem estabelecido com absoluta precisão toda a teoria do desenvolvimento e toda a ciência em geral – e que esqueceram os utopistas e esquecem os oportunistas de hoje que temem a revolução socialista – é a circunstância de que, historicamente, deve haver, sem dúvida, uma fase especial ou uma etapa especial de transição do capitalismo ao comunismo”.
[31] Idem, pág. 364.
[32] Idem, pág. 365.
[33] Em sua explicação da burocratização da União Soviética Negri permanentemente deixa de lado que a revolução russa sucedeu... na Rússia, isto é, num estado onde a indústria moderna nas cidades não era mais que uma ilha em meio a um oceano camponês, que vivia no maior atraso tanto cultural como de condições de trabalho.
[34] Karl Marx, “Crítica del Programa de Gotha”.
[35] Em princípios da década de 90, Mandel citava estudos que sustentavam que os recursos tecnológicos atuais permitiam nos países capitalistas centrais o estabelecimento de uma jornada de trabalho de seis horas generalizada, mantendo os volumes de produção.
[36] Ver Antonio Negri, “El poder constituyente”, capítulo sexto, especialmente os pontos 2 e 3.
[37] No Prólogo de “La Revolución Permanente” Trotsky assinalava: “Ao prognosticar a Revolução de Outubro, ninguém pensava, nem remotamente, que, pelo fato de apoderar-se do Estado, o proletariado russo fosse arrancar o ex-império dos czares do concerto da economia mundial. Nós, os marxistas, sabemos bem o que é e significa o Estado (...) O poder público pode desempenhar um papel gigantesco, seja reacionário ou progressivo, segundo a classe em cujas mãos caia. Porém, apesar de tudo, o Estado será sempre uma arma de ordem superestrutural. A passagem do poder das mãos do czarismo e da burguesia às mãos do proletariado não cancela os processos nem revoga as leis da economia mundial. É certo que durante uma temporada, depois da Revolução de Outubro, as relações econômicas entre a União Soviética e o mercado mundial se debilitaram bastante. Porém, seria um erro monstruoso generalizar um fenômeno que não representava, por si, mais que uma breve etapa num processo dialético. A divisão mundial do trabalho e o caráter supranacional das forças produtivas contemporâneas, longe de perder importância, a conservarão e ainda a dobrarão e decuplicarão para a União Soviética, na medida que esta vá progredindo economicamente.”
[38] E nem falar dos países do “glacis”, onde a expropriação da burguesia foi realizada inteiramente por cima, sob a ocupação desses países pelo Exército Vermelho.
[39] Devido ao controle totalitário da burocracia, a forma que encontrava a resistência operária aos planos burocráticos era o ausentismo e o trabalho negligente.
[40] Leon Trotsky, “La revolución traicionada”, Ediciones Crux, pág. 243.
[41] “Quando a maioria do povo começa a assumir, por sua conta e em toda parte, esta contabilidade, este controle sobre os capitalistas (que então se converterão em empregados) e sobre os senhores intelectuais que conservam seus hábitos capitalistas, este controle será realmente universal, geral, do povo inteiro, e nada poderá escondê-lo, pois ‘não terá escapatória’. Toda a sociedade será um só escritório e uma só fábrica, com trabalho igual e salário igual. Porém, esta disciplina ‘fabril’, que o proletariado, depois de vencer os capitalistas e derrotar os exploradores, fará extensiva a toda a sociedade, não é de modo algum nosso ideal nem nossa meta final, mas sim apenas um escalão necessário para livrar radicalmente a sociedade da infâmia e da ignomínia da exploração capitalista e para seguir avançando.” Lênin, “El Estado y la Revolución”, capítulo 5.