Revista ESTRATÉGIA INTERNACIONAL nº 18 – Fevereiro/2002 www.ft.org.ar

 

Desvio ao estilo ‘latino-americano’

 

Christian Castillo

 

No artigo “Crise de domínio burguês: reforma ou revolução na Argentina” desenvolvemos os planos de “reforma política” que a classe dominante está preparando para desviar o processo revolucionário em curso. Um, o que preserva, maquiando, o velho regime, se expressa no projeto governamental de “diminuir o gasto público” e que, possivelmente, seja insuficiente para recriar a confiança das massas. O outro plano em marcha é o anunciado por Elisa Carrió e a centro-esquerda, que vai desde a convocação de eleições gerais até o chamado a uma assembléia constituinte e a incorporação das “assembléias populares” às instituições de uma “segunda República”.

Porém, inclusive essas saídas poderiam fracassar devido à profundidade da crise. Devemos prever outra variante com a qual se pretenda conter a ação da classe operária e das massas populares: governos nacionalistas burgueses ou pequeno-burgueses.

Durante seu exílio no México, Trotsky desenvolveu a peculiaridade que tinha a relação entre as classes nos países semicoloniais. As burguesias locais são classes “semi-opressoras, semi-oprimidas”, exploradoras das massas operárias e camponesas mas, por sua vez, oprimidas pelo capital imperialista. Depois de uma década na qual a burguesia local se entregou como nunca aos braços do imperialismo, a combinação entre a crise econômica mundial e o ascenso das massas na nova etapa revolucionária abre a possibilidade de ressurgimento de governos do tipo que Trotsky chamava “bonapartistas sui generis ‘de esquerda’”, que diante do aumento da pressão imperialista ou um aprofundamento da ação da classe operária busquem manobrar com as classes exploradas “inclusive fazendo concessões” e tomando alguma medida “antiimperialista”, pretendendo colocar um freio no curso revolucionário e, por sua vez, conseguir certa autonomia face ao capital imperialista. A história latino-americana é rica em governos deste tipo, que barraram a ação revolucionária das massas operárias e populares e possibilitaram o posterior triunfo de golpes contra-revolucionários.

No Chile, em 1973, o governo da Unidade Popular, dirigido por Salvador Allende, impulsionou a nacionalização do cobre, até então em mãos de companhias imperialistas. Um colossal ascenso operário e camponês cruzava o país, porém as massas confiavam em Allende. Na época, o então secretário de estado norte-americano Henry Kissinger interviu pessoalmente na preparação do golpe de estado orquestrado pelo imperialismo ianque e a oligarquia local. Apesar da tendência ao armamento demonstrada pelos operários e camponeses, e o desenvolvimento de organismos de duplo poder como os “cordões industriais”, a política do Partido Comunista e do Partido Socialista no governo foi de confrontar os ânimos revolucionários dos trabalhadores, desarmando-os e chamando a confiança na “lealdade das forças armadas”. O resultado disso foi a imposição da sangrenta ditadura pinochetista.

Na Bolívia, depois da derrota na “guerra do Chaco”, abriu-se um processo de agitação social e fragmentação da classe dominante que durou vários anos, levando ao triunfo eleitoral do candidato do Movimiento Nacionalista Revolucionario, Victor Paz Estenssoro, que mantinha um discurso marcadamente antiimperialista e de denúncia da “rosca” (nome dado ao grupo dominante local, odiado pelas massas). Uma tentativa de golpe que pretendia desconsiderar o resultado eleitoral provocou a explosão de um processo revolucionário que teve como vanguarda a classe operária das minas. As massas levantaram-se derrotando e desarmando o exército e formando milícias baseadas nos sindicatos que detinham o controle do armamento. Os camponeses tomavam as terras e expulsavam os latifundiários. O governo nacionalizou as minas e sancionou a reforma agrária. Porém, os trabalhadores não avançaram para a conquista do poder. Passado o primeiro embate, o exército se reorganizou e buscou retomar laços com o imperialismo norte-americano. Paz Estenssoro foi progressivamente se entregando ao FMI, porém os imperialistas e a classe dominante local queriam um governo ainda mais confiável. Finalmente, em 1964, se deu um golpe de estado liderado pelo general Barrientos que impôs uma cruel ditadura militar.

O surgimento de governos deste tipo, como um sintoma da radicalização do movimento de massas, é um obstáculo para que a classe operária consiga sua independência política e imponha sua hegemonia na aliança operária e popular, tomando a direção da luta contra o imperialismo. Um “desvio” ao qual as burguesias locais recorrem para evitar que os trabalhadores alcancem o poder. Toda a experiência histórica mostra que a burguesia “nacional” (ou suas “sombras” pequeno-burguesas nas “frentes populares”), ainda quando se enfrentam circunstancialmente com o imperialismo preferem se entregar a este a permitir que se desenvolva a mobilização independente das massas.

Especialmente quando cresce a pressão imperialista e se aprofunda o ascenso das massas, podemos ver no futuro a repetição de fenômenos deste tipo em nosso país, mesmo que muito provavelmente surjam na forma de “farsa” pelas características “senis” que têm, hoje, as burguesias latino-americanas.

Atualmente, quando variantes deste tipo ainda não se desenvolvem, já estamos vendo a política dos que na “esquerda” impulsionam a colaboração de classes na qual a classe operária não será mais que um ator subordinado de algum setor das classes dominantes nativas. O maoísta PCR busca, vez ou outra, “seu” burguês ou militar “nacionalista” (agora chegaram a reivindicar abertamente Seineldin) com o qual possa concretizar seu “governo de unidade popular”, do qual pareciam ver um passo no fugaz governo de Rodriguez Saá e seus “autênticos decadentes”. Por sua parte, o Partido Comunista (integrante da Izquierda Unida) revive a velha tese stalinista de uma “revolução democrática e popular”, sob a qual buscam evitar que a classe operária avance a sua independência política. Estas políticas devem ser combatidas sem vacilação: preparam a derrota dos trabalhadores. A elas deve-se opor a combinação de uma luta conseqüente contra a dominação imperialista com a busca intransigente da independência política da classe operária, sem a qual esta não poderá hegemonizar a aliança operária e popular e superar obstáculos do tipo das “frentes nacionais” ou as “frentes democráticas” com os quais busca-se adormecer a vontade revolucionária da classe operária e das massas populares.

 

A via da contra-revolução aberta

 

Porém, assim como na etapa a classe trabalhadora pode se enfrentar com os “desvios” das “reformas políticas” e, inclusive, com as novas manifestações do nacionalismo burguês (ou pequeno-burguês), também devemos nos preparar para as possíveis respostas abertamente contra-revolucionárias da burguesia. Na Argentina, a perspectiva de um golpe de estado tradicional não é imediata. As forças armadas continuam com um grande desprestígio entre as massas. Nunca se recuperaram do duplo descrédito da ditadura e da derrota na guerra das Malvinas. No imediato, além disso, a base necessária de todo golpe de estado – setores importantes das classes médias – está na oposição pelo confisco de suas poupanças realizado pelo governo para salvar os bancos. Todavia, como marxistas sabemos que as classes médias não são homogêneas e tenderão a dividir-se diante de uma futura irrupção da classe operária. Sem recorrer necessariamente a um golpe de estado clássico a burguesia pode encontrar base social entre os setores mais acomodados das classes médias para uma saída a favor da “ordem”, sobretudo se entram em cena as classes mais exploradas, realizando ações revolucionárias. Pode tentar criar o terreno para isso provocando derrotas parciais a setores de vanguarda que lhe permitam impor diversos graus de um estado mais policial ou, ao menos, retirar as massas da cena por um tempo. Ao se aprofundarem as condições revolucionárias também possivelmente vejamos multiplicar-se as formas de repressão parapolicial (que embrionariamente já atuaram na “Batalha da Praça de Maio”), juntamente com o recurso a bandos de “lumpens” com o objetivo de atacar os ativistas e a esquerda, como já vimos na ação dos “linha de frente” do peronismo e da burocracia sindical. Diante de todas estas alternativas, ganha importância a proposição de formação dos piquetes de autodefesa (que sejam base de futuras milícias de trabalhadores) entre os distintos organismos operários e populares.

Em qualquer das variantes, o avanço da classe operária na conquista de sua independência de classe é a chave para que esta nova irrupção das massas não tenha como fim uma derrota ou um aborto.